Porque o que estamos fazendo agora em ensino NÃO é aprendizagem online: catarata não se opera em pronto-socorro

Estamos em um contexto de excepcionalidade – não apenas declarada, como de fato foi o estado de calamidade pública – mas vivemos efetivamente dias que mais parecem descritos em livros de ficção científica: ruas desertas, tráfego livre, silêncio nas ruas e natureza se exibindo: em cor, flor, cheiros e música raramente sentidos em ambientes urbanos.

Isso para contextualizar o momento em que estamos: não prestar atenção ao que nos rodeia, e efetivamente tomar conta e nota disto, nos faz operar no automático e tomar decisões, passar julgamentos e mobilizar recursos em situações de emergência que raramente passariam pelo crivo do bom senso.

Tal têm sido a atuação de boa parte das respostas que as escolas e a comunidade a qual pertencem seus coadjuvantes: diretores, coordenadores, professores, pais e alunos. No afã de fazer algo perante uma situação de isolamento decretada – e acatada – pois ninguém duvida da voracidade do novo coronavírus a essa altura, temos testemunhado uma grande confusão: o que se está fazendo na maior parte das escolas é um ensino remoto emergencial que não deve ser confundido com aprendizagem online. Os motivos são vários, mas antes vamos a algumas definições e à analogia do título.

Assim como em uma cirurgia de catarata, aquele que opta por realizá-la o faz de forma programada: há vários exames pré-operatórios que precisam ser feitos, decisões que necessitam ser tomadas e que envolvem planejamento: o plano cobre a cirurgia? O médico que fará a operação está plenamente capacitado para isso? Tenho condições de fazer a recuperação indicada? Estou pronto para eventuais acomodações? A lente que devo colocar é a mais indicada para os meus olhos?

Enfim, várias são as questões que se colocam e tanto as de grande porte (custo, capacitação, adequação) quanto as de maior granularidade (acomodações, alterações diárias, acessórios) merecem consideração. Isso justifica o fato de que ninguém faz uma cirurgia de catarata às pressassem tempo de preparação. Esse tempo de preparação se faz necessário tanto para quem vai passar pela cirurgia como para quem vai realizá-la e também custeá-la. Vários são os coadjuvantes nessa cena e todos exercem – em diferentes graus-sua autonomia, o que significa controle e escolhas, dentro do cenário posto.

Bem diferente é a situação de alguém que dá entrada no pronto socorro, onde o atendimento se dá em virtude da urgência e as decisões são tomadas tendo em vista o que deve ser priorizado para a manutenção da vida. Nesta situação, o controle do paciente é quase nulo e quem toma as rédeas – como efetivamente deve ser – é o médico responsável que por vezes tem que tomar decisões cruciais em cenários drásticos (o que manter X o que perder). Não é planejado muito menos desejado – é o que se pode fazer em virtude da premência do contexto: ou se socorre ou
o paciente morre.

Portanto, vamos às definições e aos motivos do porquê uma aprendizagem online é como uma cirurgia de catarata enquanto o que estamos, majoritariamente, fazendo em educação hoje, é o ensino remoto emergencial, isto é, um atendimento de pronto-socorro.

Uma aprendizagem online, assim como sua correspondente presencial, é um evento planejado, intencional, com decisões compartilhadas e cenários bem definidos. Os profissionais que planejam essa aprendizagem devem ser capacitados para tal, devem saber operar com os recursos disponíveis para alcançar os objetivos declarados. Paralelamente, os alunos que optam por essa modalidade de ensino devem saber como se autorregular para alcançar o objetivo almejado, devem ter os recursos necessários para tal a seu dispor e devem poder exercitar seu controle e escolha ao longo do processo pelo qual optaram passar. E o contexto onde se dá tal aprendizagem é previa e intencionalmente preparado de tal forma que surpresas, caso
aconteçam, possam também ser tratadas com os recursos provisionados para tanto.

Quanto ao ensino remoto emergencial, cuja nomenclatura deriva de uma publicação recente, a situação é totalmente diferente. Primeiro porque não houve planejamento nem intencionalidade. As escolas, nem tampouco seus agentes (professores, coordenadores e diretores), começaram o ano letivo sabendo que em determinado momento toda sua rotina presencial migraria para o ambiente online. Não houve planejamento nesse sentido pois efetivamente ninguém poderia prever esse estado emergencial – que fez com que todos tivessem que improvisar ações e recursos em tempo recorde – para prestar um serviço (ensino) para aqueles que igualmente não optaram por essa modalidade de aprendizagem.

Tanto pais quanto alunos estabeleceram no início do ano letivo um acordo para que a aprendizagem fosse presencial e se programaram para tanto, reservando horários e estabelecendo rotinas adequadas à essa opção. Não foi requerido que precisariam ter uma internet de alto desempenho nem tampouco um dispositivo móvel individual para uso escolar e diário que mediasse essa aprendizagem. Foi o contexto emergencial que fez com que aquilo pelo qual tinha optado – o ensino que efetivamente contrataram, seja através de um prestador público ou privado – migrasse quase que instantaneamente para uma forma remota, característica imposta pela necessidade de isolamento social.

Dito isso, vamos ao que se pode fazer e o que precisamos evitar. Podemos efetivamente utilizar a situação atual e aproveitar oportunidade ensejadas para melhorar processos e produtos. Um exemplo é a inserção dos pais em diálogos, rotinas e expectativas que antes eram comunicadas unicamente aos alunos. Nesses tempos emergenciais quando o isolamento confina crianças e jovens a espaços não projetados para tanto, os pais se tornam agentes essenciais para o estabelecimento de uma normatização – um conjunto de normas adequadas para determinado momento – sem o qual nem o próprio ensino poderá ocorrer.

Essa normatização passa pela comunicação efetiva, transparente e em bases de respeito e entendimento mútuo, entre agentes da Educação e pais. Para que isso ocorra, tais agentes precisam adequar o vocabulário de sua área, que envolve procedimentos, técnicas, estratégias, métodos, avaliações e currículo, de forma – e na medida – que os pais possam efetivamente compreender o que está sendo feito em prol dos alunos.

Não é falar tudo o que se faz até porque nenhum paise prontificou a fazer um curso emergencial de Pedagogia ou precisa conhecer as entranhas da Didática; isso faz parte da formação dos agentes da Educação; o que se precisa fazer é adequar aquilo que se está fazendo para uma comunicação eficiente do que pretende alcançar.

Perdas fazem parte do contexto – ninguém imagina que os alunos possam ter o mesmo desempenho muito menos efetiva aprendizagem quando tudo foi virado de cabeça para baixo pelo contexto – mas a culpa não existe nesse cenário. Nenhuma escola, ou profissional, optou por esse modo de trabalho de início – mais uma vez é necessário ressaltar – então o que se está fazendo agora tem um caráter emergencial, visa atender necessidades prementes e deverá cessar (da forma como tem sido realizado) assim que o contexto se normalizar.

Quando pais estão bem informados, adequadamente preparados para a efetiva parceria que o contexto nos impôs, temos um cenário de confiança consolidada, onde o vínculo incialmente estabelecido sai reforçado por uma atuação pró ativa e criativa. Quando pais não são tão informados, nem amparados em suas tentativas de apoiar seus filhos nesse ensino remoto emergencial, o que temos é potencial – uma força propulsora de conquista de situações e parcerias mais bem adequadas à uma aprendizagem eficaz.

Mas quando pais permanecem desinformados, desinteressados e resistentes, então temos um verdadeiro desafio – mais um nesse cenário emergencial – em que precisamos, na qualidade de agentes da Educação, entender que confiança não é um direito mas sim um presente: recebe quem o merece e ganha quem o conquistou. É preciso muita calma, paciência e profissionalismo para comunicar com segurança e tranquilidade aquilo que se está fazendo para que a crise possa passar e os danos serem minimizados.

Portanto temos um saco de limões, que permanecem azedos, a limonada não tem açúcar e espremê-los podem queimar a pele caso não nos protejamos do sol. Mas é líquido, evita a desidratação até que o alimento chegue, e pode ser o ingrediente essencial para uma deliciosa torta. Para isso, precisamos de tempo, de outros ingredientes, de calma e de preparação.

O que não podemos fazer, isto é arriscar deixar a pele manchar e causar uma marca, é igualar aprendizagem online com esse ensino remoto emergencial. Caso o façamos, nossos alunos e professores de hoje podem nunca mais querer provar do limão. Vão perder a oportunidade de sentir que pode ser transformado em uma bebida muito gostosa, uma vez tenhamos os ingredientes necessários para tal. Poderão não querer mais saber de limonada alguma nem como limões podem virar efetivo alimento, chegando a substituir o chocolate, caso se deseje.

Para evitar isso, é necessário preparar nosso paladar, nossa cozinha e nossa mesa – e comer sem pressa!
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Mirela C. C. Ramacciotti tem 30 anos de experiência com educação. Saiba mais em
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